quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Um conto assombroso de um cara assombrado...

Atenção, vou fazer algo que tive vergonha até hoje!
Não, não é nada disso que vocês e suas mentes distorcidas estão pensando!
Aí vai um conto que escrevi há muito tempo, coisa minha, de terror... Tá, leiam e pronto, antes que eu volte atrás e apague.


Oração à lua

Novamente ela chegou! E, com ela, o meu desespero. Outra vez o pânico toma conta de meus sentidos. Depois de todos esses anos eu ainda não consegui me acostumar com a idéia. Na verdade, ninguém conseguiria.
O calendário, meu maior inimigo, pendurado inerte na parede com suas datas, peitos e bundas, me avisa a todo instante que a hora está prestes a chegar, que o meu dia, ou seria a minha noite, se aproxima, implacável.
Meu pavor é a espera, a impotência frente ao tempo, esse carrasco que me condena à agonia e à morte eterna em vida. Cara a cara com o passar dos dias, só me resta torcer para que tudo acabe logo, que seja o mais breve possível. Não rezo, apenas torço. Sei que, se existe um deus, ele me odeia.
A noite chega e com ela vem a lua, esposa e assassina. Traz consigo a minha imagem, minha face verdadeira. Fora com o homenzinho discreto, de modos educados, escondido atrás de pilhas de pastas e montanhas de papéis, firme e seguro no calabouço da burocracia do Estado.
A lua sabe quem sou, conhece meus segredos e parece se divertir, jogando em minha cara essa nojenta e pavorosa verdade. Eu a odeio.
Odeio pelo calor sufocante que parece me queimar por dentro, odeio a dor da carne mutante, esticando e encolhendo músculos e ossos como se fossem de borracha, odeio os pêlos tomando conta daquilo que um dia foi humano. Mais do que tudo, odeio a invasão de sons e cheiros e a fome que os acompanha.
O grito de dor, em forma de uivo, rasgando o silêncio da noite, antecede a fome desesperadora e a busca insana por alimento, que me desliga de qualquer condição humana que por acaso ainda teimasse em habitar esse corpo. A besta que habita em mim – ou serei eu que habito a besta? É tudo confuso – ronda pela cidade, por seus becos e vielas, atrás do cheiro de sangue quente, de carne fresca. Uma presa fácil: mulheres da noite, bêbados ou crianças perdidas... nada escapa de meu apetite.
Eu sou o monstro. Ele sou eu. Ele me ama e eu o odeio. Ele me protege, precisa de mim. Nada me atinge: nada de resfriados, febres ou cicatrizes. “Saúde de ferro!”, dizem na repartição. Doença de aço penso eu, tão incurável que não permite que outra enfermidade se aproxime. Odeio a besta por ela me amar tanto, por dedicar-se a mim, pelo seu zelo em me manter um morto que caminha entre os vivos.
Só espero que seja breve. Lembro que, da última vez, pareceu que as coisas se encaminharam com mais rapidez. Acordei, nu como sempre, no porão da casa que divido com o monstro. Este é seu espaço, seu ninho. O cheiro, lá em baixo, é nauseante, sendo necessário que, de tempos em tempos, eu precise passar cal no chão e dedetizar as paredes, tarefa nada agradável, diga-se de passagem.
Naquele dia, os vizinhos me indagaram se não havia visto “um cão enorme” correndo de madrugada para dentro de meu pátio. Desconversei e nada disse. Realmente não lembrava de nada. Havia despertado com o inconfundível gosto de carne humana na boca, vomitado, e subido para tomar um banho. Sem cansaço, sem olheiras, pronto para o trabalho.
Agora, novamente chega a hora. Sinto o fogo me assando a carne, a urina escorrendo sem controle pelas minhas pernas, as mãos inchando e se cobrindo de pêlos. Os dentes, ah, como me doem os dentes, brotando, pontiagudos, das gengivas. Lá está ela, branca azulada, saindo de trás de uma nuvem. A dor aumenta e perco os sentidos. Acordo segundos depois, sentindo o cheiro da noite trazido pelo vento. Num pulo, sumo na escuridão, correndo, silencioso, sobre minhas quatro patas.
Neste momento, eu amo o monstro.

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